quinta-feira, 30 de junho de 2022

A DESUMANIZAÇÃO DA CULPA

 Professor Gelcimar da Silva Pereira Nunes
Fonte: google.com.br/imagens acesso em 30/06/2022.

Introdução

            Trabalhar em um ambiente escolar, traz um experimento muito interessante sobre as relações humanas e como elas acontecem no cotidiano. É na escola que temos a real percepção das virtudes e dos vícios presentes na sociedade, inclusive, na alma mais pura que é da criança.

Na escola, todos os estudantes apresentam a sua oferta diária perante o altar do conhecimento. Os professores recebem essa oferta e dizem: “É essa a educação que você traz de casa?” Claro, na escola se materializa todas as virtudes e vícios da sociedade, trazidos por meio dos comportamentos das crianças. Tal natureza se manifesta de forma automática e espontânea, isenta de culpa e reprimenda. Quando confrontadas, dizem: “Mas eu não fiz nada!” Ou seja, na consciência infantil aquilo que julgamos ser moralmente mau é normal em sua vivência diária. Daí, surge o choque cultural e conflito moral no ambiente escolar.

A VIRTUDE E A TRADIÇÃO

As crianças retratam sua cultura familiar, suas convicções religiosas, seu código moral, seus traumas e, até mesmo, seus preconceitos. Tudo isso, revela o aprendizado no lar e no meio em que vive. A escola reúne essa diversidade de culturas, de aprendizados e de conflitos.

Os conflitos familiares resvalam na escola por meio de comportamentos inapropriados da criança. Por vezes, observa-se que as crianças reproduzem linguagens e comportamentos apreendidos do mundo dos adultos. Isto porque a ansiedade, o desequilíbrio emocional, a dificuldade em lidar com conflitos, latente no seio familiar, são reproduzidos pela criança no ambiente educacional. O interessante é que alguns genitores vivem no seu nicho familiar um ambiente de intrigas e pelejas. Depois, trazem seus filhos para a escola com todas as suas expectativas e frustrações, delegando a instituição pública a tarefa lidar com eficiência com essas contradições e conflitos.

Em meio a conflitos diversos, parece que a escola tem estado entre várias decisões opostas, com a perspectiva de ser vítima de cada uma delas. A escola enfrenta o dilema moral de ser uma agência ética e responsável por quem está sob seus cuidados. Por outro lado, enfrenta a questão legal e confronta com diferentes situações em que a força da lei não lhe é favorável devido ao excessivo expediente burocrático. A lei impõe obrigações à escola e aos educadores, mas não protege o agente público no exercício de suas funções. Isto vitimiza o professor que passa a enxergar o problema do conhecimento como um dilema moral entre cumprir suas obrigações ou pôr em risco sua integridade.

Hoje, os educadores percebem que não basta ensinar apenas os conteúdos das disciplinas, é preciso instruir os alunos quanto aos valores, a cultura do respeito e da paz. O que se observa é um grande número de crianças com dificuldade de entender e obedecer regras. Os conflitos na escola surgem pelo descumprimento das regras instituídas e pela falta de reverência a pessoa que detém a autoridade de comando imediato, no caso, o professor.

            Há de se considerar que a virtude é uma qualidade moral a ser aprendida. Segundo o filósofo estoico Lucius Anaeus Sêneca (4 a.C. – 65 d.C.) “A virtude é difícil de se manifestar, precisa de alguém para orientá-la e dirigi-la. Mas os vícios são aprendidos sem mestre.” Segundo definição do dicionário Priberan (https://dicionario.priberam.org/virtude), “a virtude é a disposição do indivíduo a praticar o bem e evitar o mal; não é apenas uma característica, trata-se de uma verdadeira inclinação. Virtudes são todos os hábitos constantes que levam o homem para o caminho do bem. Se a virtude é uma disposição aprendida, logo o mal é uma inclinação natural do indivíduo, despido de qualquer orientação ou regra.

          É interessante a abordagem do professor Howard Hendrick de que o ensino deve ter por finalidade “transformar vidas”. Por sua vez, Mahatma Gandhi declarou:

“O que destrói a humanidade?

Política sem princípios;

Prazer sem compromisso;

Riqueza sem trabalho;

Sabedoria sem caráter;

Negócios sem moral;

Ciência sem humanidade;

Oração sem caridade.”

Reportando a cultura judaico-cristã, observamos que a Lei do Amor, citada por Howard Hendrick, deve permear toda aprendizagem, ensinando para gerar atração, motivação comunicação e colher um investimento de vida transformada. O diálogo incessante, cognoscente é uma ferramenta poderosa para incutir comportamentos que traduzem as virtudes da bondade, da empatia, do respeito, da tolerância, da solidariedade, etc.

Por isto, o ensino deve ter por objetivo o desenvolvimento da virtude na pessoa. Qualquer escolarização por mais qualificada que possa aparentar é incapaz por si só de tornar uma pessoa ética. O conhecimento pelo conhecimento jamais tornará alguém moralmente bom. Por vezes, o conhecimento cria uma ilusão de poder. Aliás, uma das mercadorias mais valiosas é a informação e o conhecimento, pois permite controle situações e pessoas. Dessa forma, o conhecimento corrompe muitas pessoas que ficam engabeladas pela ideia de supremacia trazidas pela lógica, pela racionalidade e cria separação entre os esclarecidos e os ignorantes.

           A qualidade da formação acadêmica de um ser humano não garante uma boa educação a alguém. Ademais, existe uma diferença entre conhecimento e educação. Conhecimento não é sinônimo de caráter. O universo nos ilustra de pessoas bonitas, ricas, famosas e desprovidas de qualquer pudor. Pior. Há muita gente que admira e se inspira em celebridades pavorosas. Há brilhantes personalidades com total desprezo pelos semelhantes.

         Cultuar a virtude nasce de uma crença oriunda no seio familiar, embarcada nas tradições do respeito e da disciplina. É no lar que recebemos a bênção da posteridade, pela maturidade dos idosos, aprendemos a crer no poder da oração e praticar a fé em Deus em memória do exemplo dos pais.  A crença está enraizada no seio familiar em que a hierarquia das relações de poder é respeitada por amor, temor e zelo. Alguns confundem temor como medo. Temor aqui tem o significado de reverência, cultuar o respeito a quem tem autoridade moral e espiritual, por mais fragilizado que esteja o seu corpo. Por isto, as crianças devem respeitar os maus velhos. Diante da maturidade do ancião, cala-se todas as vozes infantis e adultas para que seja revelada a sabedoria. Esse preceito recebido por tradição dos antepassados, vem sendo negligenciado por esta geração. Lamentavelmente hoje, as vozes dos adultos e idosos estão sendo abafadas pelo falatório fútil das crianças e adolescentes, silenciando a manifestação da sabedoria.

ESSA GERAÇÃO É MARCADA PELOS VÍCIOS

Por outro lado, quando a virtude se ausenta surge em seu lugar os vícios que se, não forem controlados, levam qualquer pessoa ao mais baixo nível de degradação moral. No original, a palavra vício, originada do latim “vitium”, significa falha, defeito. É um hábito repetitivo que degenera ou causa algum prejuízo ao viciado e aos que com ele convivem. Geralmente, no imaginário popular, ao falar de vício, lembra-se de álcool, do cigarro, das drogas, da pornografia, etc. Porém, há vícios aceitáveis socialmente como a linguagem inadequada, a indecência, a grosseria, a desídia, a irresponsabilidade, a fofoca, a mentira, etc.

Os vícios surgem pela ausência do ensino adequado da virtude. Ou seja, a bondade é uma virtude a ser ensinada desde a infância por meio de um diálogo constante: acordando, assentando, caminhando e ao deitar; pelo exemplo dos mais velhos e pela vivência diária. Sem a educação adequada persistente que começa no chão de cada lar, gerações inteiras tem se corrompido.

           Contudo, urge vozes que se levantam contra a tradição dos costumes antigos para denunciar os abusos e a violência na inculcação de valores. Criticam algumas situações de brutalidade da punição aos transgressores, para manutenção do status quo familiar. Argumentam que as nódoas da educação tradicional trouxeram consequências traumáticas severas, reproduzindo o machismo, a homofobia, a misoginia, dentre outros preconceitos. Assim, tentam transformar a virtude em dissolução para instruir uma nova ordem social.

            A inversão de valores presente na sociedade foi chancelada pelo advento do pluralismo e do modernismo que trouxeram questionamentos do berço moral dos nossos antepassados. Então, os intelectuais trazem uma nova agenda que inaugura uma era de direitos para todos. Propõe uma nova sociedade em que a inclusão flexibiliza todo entendimento e relativa toda forma de crença. Ou seja, cada um na sua cabana com o seu jeito de ser e de pensar, mesmo que isto signifique romper valores familiares e sociais. Então, se cada um tem a sua verdade, não existe certo ou errado. Depende do ponto de vista de cada um, desde que não seja ilegal...

            A divinização do homem consiste em torna-lo a medida de todas as coisas. É o marco do direito para definir o que é certo ou errado, apesar das vozes discordantes. É a anulação do transcendente, espiritual para inaugurar a era da matéria. Se o homem é o centro de todas as coisas, tudo é permitido. O certo ou errado é questão de opinião.

            Pior. Vivemos o momento de anestesiamento de consciências. É de se lamentar a perda da comoção pelo erro cometido. Observamos que a primeira providência tem sido justificar o erro como um direito pessoal. Então, surge o argumento do revide para justificar a agressão, a emulação para justificar o furto (“todo mundo está fazendo”) e a tese da vitimização. Às vezes, tentam atenuar o erro, reduzindo o indivíduo a circunstância de causa e efeito. Então, usam o ambiente de risco social para justificar a escolha de alguém pelo desinteresse pelos estudos e a preferência pelo crime.

         Estamos na época da multiplicidade dos transtornos mentais, produtos da insegurança e do esgotamento moral. A ética está sendo sufocada por reclamações e reivindicações obtusas por meio de um individualismo míope de direitos e cego de responsabilidades. Isto gera expectativas não atendidas que produzem frustrações e mais transtornos. Por sua vez, os transtornos tem sido utilizados como justificativa para atenuar diversos erros e infrações.

            Com isto, assistimos passivamente o desaparecimento da culpa. As pessoas não sentem mais tristeza pelo erro cometido. Aliás, temem as consequências. Isto porque perderam a capacidade de refletir sobre aquilo que é mal e perderam a disposição para o arrependimento. Quando há pedido de desculpas é porque a pessoa teme o prejuízo, não porque se arrependeu. Isto está muito em voga no mundo das celebridades por causa da indústria do cancelamento.

            Também, na escola, as crianças estão perdendo a disposição para o arrependimento. Não sentem a tristeza da culpa. Temem apenas a aplicação da disciplina escolar. O pedido espontâneo de desculpas está desaparecendo do ambiente escolar.

            Na música “Há tempos”, o músico Renato Russo diz que “Herdeiros são agora da virtude que perdemos”. Apesar do turbilhão emocional que músico passava por ocasião da composição, inclusive tentando o suicídio, ele via a sociedade em estado de degeneração das virtudes. Segundo a música, essa perda gera tristeza, cansaço e solidão, apesar de toda euforia pelo prazer que alguém ousa buscar. Lamentavelmente, nossa geração está sendo celebrada em função dos vícios que cultuam do que pelas virtudes que deveriam abarcar.

           Com a perda dos valores éticos e morais temos mais intolerância, agressividade, impaciência e outras mazelas, fruto do individualismo, materialismo e egocentrismo existente na sociedade. O materialismo desumaniza o indivíduo para valorizar aquilo que é matéria, temporário e efêmero, como: bens, fama, posição. Com isso, o ser humano passa a se considerar a medida de todas as coisas. O que ele pensa, o que julga certo passa a ser a medida de todas as coisas. É um perigo que estamos nos encaminhando se não houver um freio moral para essa ideologia subliminar.

            Inclusive o materialismo e o individualismo têm interferência na liberdade das pessoas. As pessoas se tornaram reféns de suas próprias ambições e caprichos pessoais. Isso revela uma contradição: se o homem não é eterno, sua vida é transitória e toda acumulação é fútil e ilusória. Também, toda glória e satisfação que a fortuna proporciona é vaidade. Dessa forma, a alegria momentânea e o prazer eufórico trazem a sensação de felicidade, no seu sentido incompleto, transitório e vazio. Toda a euforia é uma forma de remediar a tristeza, o cansaço e a solidão. A felicidade se apresenta como um estágio distante, inalcançável e até mesmo impossível, e muitos procuram a satisfação carnal, para experimentar por um pouco de tempo, a paz, a alegria e autoafirmação do seu próprio ego.

            Vivemos numa civilização enferma de amor, carente de misericórdia e indiferente as suas próprias mazelas. A objetificação do ser humano não se restringe ao apelo sensual-erótico da mulher como fetiche de uma mercadoria da prateleira da mídia. Essa objetificação surge da natureza das pessoas arrogantes que tratam os demais como de “alma inferior”, domesticados, ignorantes e, portanto, descartáveis.

Toda a má-educação tão evidente na sociedade tem a eficácia da trilha sonora, das cores das imagens, do toque imediato e, sobretudo, a vívida interação sem censura. A apreensão das informações acontece sem filtros e possível reflexão. O cérebro torna-se involuntariamente um depositário de informações e instruções. Então, a má-educação percebida em infantes que frequentam as escolas surge do consumo de cultura inútil que está disponível nos meios de comunicação e nas redes sociais.

CONCLUSÃO

A escola mantém a tradição e não quer remover os marcos antigos. Tomara. A tradição reafirma a permanência da identidade da cultura de uma civilização. Com a perda da tradição, a identidade de muitas tribos indígenas e quilombolas desapareceu. A escola tem por marco antigo a instrução por meio da oralidade, da leitura e da escrita. O problema é que ninguém tem paciência para ouvir, para ler e para escrever. Hoje é comum falar para uma plateia alheia, desinteressada, com pessoas de costas, conversando... Isso se observa na escola, em diversos eventos. Ouvir por educação é um clamor com perspectivas temporárias, pois pedir silêncio é lutar contra a cultura do desrespeito enraizado nas entranhas dos indivíduos.

Estamos imersos numa geração de tagarelas, que gargalham por piadas débeis, importam-se mais com a vida dos outros do que com si mesmos. É uma geração que fala muito, sem parar, mas não sabe dialogar. Por isto, armam-se com estereótipos, preconceitos e visões de mundo equivocadas. Por consequência, vivem na ilusão do seu próprio ego.

O vicio audiovisual prioriza o entretenimento e o prazer em detrimento do conhecimento. Qualquer esforço mental é um fardo para a criança que se acostumou a receber informações prontas diretamente do aparelho celular. As crianças e os jovens consideram a leitura uma atividade exaustiva, improdutiva e desnecessária. Isto porque assistir vídeos e jogar online exige um esforço mental mínimo. Desconhecem eles que a leitura silenciosa e solitária tem conexões com o mundo espiritual. Produz reflexões, desenvolve a imaginação, ativa o aprendizado e a memória.

REFERÊNCIAS:

BOTTON, Alain de. As consolações da Filosofia. São Paulo: Saraiva, 2012.

CAMPOS, Helder Carlos de. O Pluralismo do Pós-Modernismo. Fides Reformata, 1997.

CURY. Augusto. O Semeador de Ideias: que atitudes tomaria se o mundo desabasse sobre você? São Paulo: Editora Academia de Inteligência, 2010.

HENDRICKS, Howard. Ensinando para Transformar Vidas. Campinas (SP): Betânia, 1987.

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