
professor Gelcimar da Silva Pereira Nunes
INTRODUÇÃO
Lembro-me quando ouvi pela primeira vez a música “Perfeição”, da banda Legião Urbana, composta por Renato Russo (1960 – 1996), que trazia um protesto contra a infâmia da nossa sociedade, citando a estupidez humana, a injustiça e o descaso dos governos. Sua ironia em celebrar "com os idiotas" as desgraças ocorridas todos os anos revelava um desejo enrustido de um mundo melhor. Assim, convidava todos a fazer uma auto-crítica daquilo que vimos em nossa sociedade e preferimos ignorar.
Para o poeta Fernando Pessoa (1888 – 1935), “adoramos a perfeição, porque não a podemos ter; repugna-la-íamos, se a tivéssemos. O perfeito é desumano, porque o humano é imperfeito”. Aliás, amamos a perfeição com um ideal inatingível, por isto, criticamos os outros, cobrando os impostos das nossas expectativas não atendidas. Assim, esperamos granjear servos das nossas convicções para que o jardim do coração se ilumine das flores da vaidade do ego.
O DIÁLOGO DA PERFEIÇÃO COM A IMPERFEIÇÃO
A imperfeição é marca constitutiva do ser humano e revela a incompletude do conhecimento sobre si mesmo e do mundo ao redor. Diferente de Adão que foi um adulto instantâneo, surgimos crianças em um corpo nu, com memória rasa, tendo que aprender desde o estímulo da sucção aos valores da cultura e da educação até o final dos nossos dias. Ainda, persiste a sensação de incompletude que nos leva a buscar o conhecimento como a última novidade da vida.
O mundo perfeito navega no ideal de felicidade do homem; deságua no oceano dos sonhos de um ambiente sem tristeza, justo e com conforto. Por isto, entendo porque o capitalismo universaliza o sonho de aquisição de bens, fama e poder como um meio de se alcançar a felicidade. Aliás, a desigualdade social torna mais desejável a realização do sonho, porém a crueza da realidade do pobre gera autocomiseração pela incapacidade de ascensão social no horizonte mágico do sonho.
O filósofo das frustrações, Lucius Aneu Sêneca (4 a.C – 65 d.C), conhecia um homem rico chamado Védio Póllio, amigo do imperador Otávio Augusto, cujo escravo deixou cair uma bandeja com copos de vidro durante uma festa. Esse homem ficou tão furioso com o som dos vidros se quebrando que mandou matar o escravo, de forma cruel, atirando-o num fosso cheio de lampreias. Ao comentar sobre esse episódio, Alain de Botton ironiza dizendo que Védio Póllio acreditava em um mundo em que os copos não se quebravam.
Nesse caso, uma das manifestações de quadro clínico de delírio é ira, descontrolável, impulsiva na sessão de descarrego brutal da insanidade.
Nas reportagens de grandes tragédias, ouvi algumas vezes o assassino dizer que estava cego que não podia ouvir a voz da sensata razão. Porém, fico escandalizado como o agressor se apresenta vítima da situação, como tivesse o direito de não ser contrariado. Ou seja, no mundo ideal compreende a satisfação dos seus desejos mais mesquinhos, que não podem ser negados, como, por exemplo, o amor de uma mulher.
Nas relações de poder, a cobrança pela perfeição manifesta os instintos mais primitivos de dominação sobre seres humanos. É a forma caprichosa de alguém se deleitar nas fragilidades do outro, impondo-lhe o sentimento de incapacidade e limitação.
Podemos entender que ao adquirir o poder, riqueza e influência, alguém pode julgar que reúne condições para superar o advento das frustrações, pois caprichosamente terá capital para comprar quem possa atender aos seus desejos. Também, pode se iludir, crendo que o dinheiro é o meio de satisfação e prazer, podendo alcançar a almejada felicidade.
Há pessoas como folhas secas a voar sem saber onde chegar, influenciadas pelo que vêem e pelo que sentem. A vida pode ser uma linda flor, mas suas pétalas se derramam pelo chão a cada estação. Assim, o desenho da felicidade anunciado no romantismo da novela se apaga no fim de cada capítulo.
Para alguns em seu mundo perfeito não pode faltar a bajulação e o elogio por mais reprovável que seja o seu comportamento. Nas asas do poder, a sensação de segurança encontra substância na quantidade de apoiadores, mesmo que inconstantes e interesseiros. O espelho transparente da crítica, por mais dolorosa que seja, mostra as nossas imperfeições e nos convida a banhar nas águas límpidas da reflexão das motivações dos nossos atos.
A imperfeição do mundo se manifesta nos contrastes das motivações humanas que vão além da situação posicional de alguém. As concepções de poder e de razão se manifesta na classificação das pessoas: ricos e pobres, intelectuais e leigos, aristocratas e servos, dentre outros exemplos. Daí pode-se inferir como surgiu a ideia de eugenia, de raça superior e as concepções do homem perfeito.
Os duelos de palavras são manifestações inconscientes do desejo que o mundo atenda as nossas expectativas. Nesse caso, as pessoas seriam perfeitas e não iriam cometer falhas, erros, pecados ou desatinos reprováveis aos nossos olhos. Talvez, essa seja a forma mais confortável de nos abrigarmos na caverna da indiferença dos nossos próprios tropeços. A trave que nos cega foi construída por nós para proteger a nossa própria verdade, sagrada na convicção de que não somos mais excelentes.
A roda que gira o mundo está manchada do sangue dos mártires que defendiam suas verdades até as últimas conseqüências. A honra dos mártires não se degeneraliza, pois essas vítimas da intolerância são testemunha da história contra aqueles que mão admitiam a coexistência de ideias divergentes, de pessoas diferentes à frente do seu tempo.
As frustrações são inerentes ao ser humano, pois são resultantes dessas expectativas não atendidas. Nos relacionamentos pessoais e profissionais podemos ser induzidos ao erro de não poderemos nos decepcionar com alguém que estamos intimamente ligados. Mesmo conscientes da imperfeição humana, cremos no ideal de que há relações perfeitas até mesmos nos níveis mais íntimos de amizade. Contudo, aprendi que se conhecermos as imperfeições da cada pessoa, poderemos compreendê-la, respeitar suas limitações e não teremos ocasião para reclamar da imperfeição. Ou seja, só podemos reclamar decepção daquilo que não conhecemos e não estávamos preparados para conviver em um momento oportuno. Por exemplo, se você convive com alguém que é chocalheiro (“sem papas na língua”) não será novidade se ele em determinado momento for traído pelos defeitos da sua natureza. Então, qual o motivo para você se decepcionar com ele, se sabia de suas deficiências. O máximo é ter uma ira momentânea, porém estéril em suas conseqüências.
A BUSCA DA FELICIDADE
A busca da felicidade rima com os anseios de um mundo perfeito, que não será encontrada enquanto perdurar o vazio existencial do ser humano. É como uma casa bela por fora, adornada com móveis por dentro, porém sem moradores. Torna-se uma morada dos sentimentos que se comunicam com imprecisão com a razão, dando arbítrio para a vontade se manifestar ao sabor das paixões. Segundo o filósofo italiano Remo Bodei, as paixões podem ser benignas ou perigosas, dependendo da lógica e do delírio de cada um.
Tenho aprendido que o caminho da perfeição está perfumado pelas flores do amor. Por isto, as sábias epístolas paulinas apontam o vínculo da perfeição enraizado na rocha firme do amor. Por isto, acredito que o amor é o remédio sem contra indicações para solucionar os males relacionados ao ciúme, à inveja e a soberba, pois o amor é benigno.
O amor embeleza amizade e supera todos os defeitos, tornando cada pessoa um sacerdote na tarefa de perfumar o ambiente pela satisfação da presença do outro. As palavras tornam-se instrumentos na construção de relações sólidas, edificadas com pedras vivas da confiança e da lealdade. Acredito que o amor é uma floresta que ajuda a despoluir os nossos corações do mal.
Por isto, gosto da concepção teológica do “Reino dos Céus” como uma experiência inerente a transformação do caráter do ser humano, pela inauguração de uma nova ética, no respeito ao próximo, inspirada nas palavras de Cristo. A ética do Sermão da Montanha é um divisor de águas entre a tradição histórica de disputas mesquinhas e o ecossistema benigno da fraternidade. O mundo perfeito é fraterno tal como a comunidade apostólica onde todos tinham tudo em comum e celebravam as festas da caridade com alegria e simplicidade.
A felicidade é simples e não precisa do enfeite da riqueza, da fama e do poder. Ela não tem dono, pois sua existência e morada são eternas. É um bem tão precioso que ninguém pode reclamar propriedade exclusiva, porque é contagiosa, em sua influência, e desejável pelo ser humano. A tristeza é o hospede mais indesejável do coração humano e flerta com a morte. Por outro lado, a felicidade anuncia a abertura das portas da alma para a vida.
CONCLUSÃO
Um mundo perfeito pressupõe a existência de pessoas perfeitas, que não podem falhar nem decepcionar alguém. São pessoas que existem no jardim do coração, compartilhadas no universo do desejo, do prazer e da complacência da satisfação egocêntrica, mesquinha e fratricida. Mas do ponto de diversidade do gênero humano, cada ser humano é imperfeito para que ao se completar com outra pessoa possa superar as suas limitações.
REFERÊNCIAS
BOTTON, Alain de. Filosofia um guia para a felicidade. Série de documentários para a TV, 2009.
RUSSO, Renato. Perfeição in Descobrimento do Brasil. Gravadora EMI, 1993.
CONEXÃO ROBERTO D’AVILA. Entrevista com o filósofo Remo Bodei. TVE Brasil, 07 de março de 2007.
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