sexta-feira, 24 de outubro de 2014

O ENCANTO E O DESENCANTO DA EDUCAÇÃO


Professor Gelcimar da Silva Pereira Nunes
INTRODUÇÃO

Faço da experiência na educação uma reminiscência dos encantos dos primeiros anos da vida em que a beleza da fantasia estava presente na minha leitura do mundo. O encanto do sonho fazia com que a educação fosse a última gota de esperança para melhoria de vida de uma geração acostumada com a vida repleta de dificuldades. A realização do sonho dos pais era sentir a felicidade dos filhos na contramão das dificuldades que eles tiveram. Por isto o maior investimento era a educação que davam aos filhos mesmo desconhecendo a grandiosidade dos valores que eles transmitiam na simplicidade das palavras.
A SIMPLICIDADE DO ENSINO 

Por isto, invisto na memória com uma saudação nostálgica à inocência dos meus primeiros anos. Eram momentos em que o sonho era complacente com a imaginação fértil da infância. Nesse universo colorido, até a lágrima tinha o sabor da fantasia cujo enredo se renovava a cada vivência. O expecto da felicidade estava na simplicidade de ver o mundo na pureza do olhar, sem a rudeza adulta que nos cercava. Em cada brincadeira estávamos construindo o nosso mundo a partir da música de Deus que escutávamos na natureza. Essa era a nossa leitura de mundo com a sua beleza e cores. Os dias eram longos, intermináveis, como a história sem fim e fazíamos da brincadeira o sonho da realidade que desejávamos viver. Na pureza do encanto, vivíamos a beleza da liberdade mesmo alardeada pelo desencanto do não. A simplicidade da existência estava no fato de bebermos a pureza da inocência sem a culpa e a igualdade da convivência sem medo e constrangimentos. Estávamos aprendendo a viver a vida pela emoção da novidade com o mundo que se apresentava sem as contradições no horizonte. Assim enxergávamos o mundo e fazia sua leitura e escrevíamos as imagens com as penas da imaginação nas páginas do coração.

Lembro-me das noites a conversar sob a luz da candeia em que as histórias rimavam com a sabedoria popular aprendida de geração em geração. Era a tradição oral com os seus rituais nas rodas de conversas sobre a experiência vivida pelos ancestrais, trazendo à memória sua origem e feitos. Devido à curiosidade, os contos eram mais vigorosos que a literatura que hoje conhecemos. Livros eram raridade, mas os preceitos essenciais da vida estavam sendo impressos nas tábuas do coração. Não tínhamos a sistematização complexa de hierarquia. Isto não bastava. O exemplo dos mais velhos nos empurrava para a vocação de querer imitá-los pelo simples prazer de ser ensinados pelos “deuses”. A aura da verdade estava na palavra empenhada, na fé de um simples aperto de mãos, dispensando quaisquer laudas cartoriais. Portanto, o senso de justiça era regulado pela crença de considerar reciprocamente o próximo superior em relação a si mesmo. Essa concepção de serviço ao próximo era o retrato humanitário dos mais humildes. Pessoas desprovidas da instrução acadêmica, mas que aprenderam a reconstruir o mundo a partir de suas experiências de vida. Não eram perfeitas, mas não viviam prostradas diante de repetições de erros que haviam sepultado em passado pregresso. Suas experiências eram lições morais que inspiravam os mais jovens a serem iluminados no processo de tornar-se pessoa. A dignidade moral era a virtude mais excelente que indicava a prontidão do jovem para a vida adulta, propício a tomar suas próprias decisões, inaugurando sua autonomia intelectual e social.

O universo do sonho era atravessado na esperança de superação da dureza da vida pela instrução escolar. Apesar da funcionalidade, ler e escrever eram apenas o divisor entre o analfabetismo e a escolarização. Buscava-se a facilidade do trânsito diário na condução das soluções simples para a vida social. A ambição de cada pessoa estava na humildade de perpetuar seu nome por gerações à essência espiritual aprendida pelos genitores. Portanto, grau acadêmico seria apenas um adorno a toda herança cultural rica em valores e representações sociais marcantes de um povo. Isto tornava a vida simples por que o conhecimento eram pinturas desenhadas na alma e na intensidade da vida de forma natural e intuitiva.

Passo a lembrar dos relatos do filósofo Carlos Eduardo Brandão sobre os primórdios da educação. Ele mostra que a roda de conversa propicia a abertura de alguém ensinável, abraçado a genial humildade de ser um aprendiz. A beleza do diálogo está na prontidão de alguém buscar se alimentar da sabedoria com vigor de suas forças mentais e com alegria de saciar-se nos banquetes do conhecimento. Isto pode ser visualizado nas comunidades simples onde a aprendizagem da criança parte do reconhecimento da sua identidade cultural no meio em que vive. A exploração dos órgãos dos sentidos reveste a aprendizagem da emoção do patrimônio imaterial que é experimentado a cada dia, criando expectativas de vivenciar experiências significativas na plenitude da idade adulta.

Lembro-me da deidade da sabedoria dos anciãos que apregoavam o caminho da dignidade por meio das histórias de suas experiências de vida. O mundo das ideias adentrava nas mentes por meio da imaginação dos seus atos heroicos. A cada conversa uma lição de vida que nos convidava a imitá-los. Eram humanos, mas na nossa imaginação eram deuses que nos abençoavam por meio de palavras. Essas palavras eram vigorosas e proporcionavam a ação educativa de viver a dignidade acima de qualquer bem material.

A novidade do mundo do trabalho era introduzida aos infantes com a arte de mostrar a predestinação de se construir uma vida adulta autônoma. Construía-se o ciclo a partir da infância com a doçura do olhar, perplexo com intento de se aventurar ao mundo da responsabilidade. Gozava-se a infância de forma vagarosa, sem a exigência da velocidade no aprendizado. Respeitava-se a lei da natureza de crescer na estação própria para colher os frutos da maturidade com a qualidade da vida.

Nessa aprendizagem da vida, destacava-se o senso de preservação das crianças para que elas não adentrassem prematuramente nas contradições do mundo adulto. Estavam propositalmente excluídas das informações e debates acalorados promovidos nas rodas das pessoas crescidas. Importava que elas vivessem a infância, respeitando o seu universo de ludicidade e encanto.

Então, as crianças deveriam captar o conhecimento do mundo pela beleza do olhar, pela naturalidade das palavras e pelo encanto dos gestos. Nada de conhecimento prematuro, apressado e impositivo. Tudo aconteceria no momento certo, seguindo a lógica da curiosidade e da descoberta. Contudo, não era custoso mostrar o caminho a ser percorrido com segurança em situações do cotidiano. Aprender fazendo e questionando seus próprios erros era a forma de produzir maturidade psicológica e emocional. O sentimento de culpa era usufruído com uma tristeza causada por um arrependimento e traria gozo em momento oportuno. O gesto amoroso da correção levava a reflexão sobre as oportunidades de praticar a virtude como o espelho do homem ideal a ser formado. Mas, o homem ideal não estava carregado da áurea da santidade, isento de todos os defeitos e protegido de todos os sentimentos indesejáveis. Era tão próximo e tão marcante como nossa própria carne. Por isto, cultuávamos em nossos pais o respeito dos deuses.

A experiência religiosa era introduzida no caminho, no caminhar e suas ondulações eram conhecidas com o brilho no olhar. No sonho era plantada a esperança que estava presente na existência dando-lhe beleza nas cores. Educar para a esperança era mostrar que as dificuldades da vida era um processo dinâmico a ser superado com o tempo para olhar mais adiante pelo retrovisor da experiência.
AS MARCAS DO ENSINO NO CORAÇÃO

Assim, as palavras eram tintas que nos marcavam e grudavam em nós, dando forma aos nossos pensamentos e ajudando-nos a estruturar ideias. As palavras tinham o valor de ouro e não causavam enfado aos ouvidos. Isto por que tínhamos o orgulho de ter a ignorância como a nossa nobre fraqueza. O reconhecimento da ignorância era o pensamento que embasava a nossa humildade. Ao praticar a virtude da humildade, o mais importante era ouvir para apreender a exposição oral, deixando a imaginação construir as imagens das informações. Não importava tanto fotografias e filmes. Todo o ensino quando chegava ao nosso entendimento se transformava em um conteúdo autobiográfico. Inevitavelmente entrávamos na história, vivendo ao lado dos personagens como se estivesse presenciando suas aventuras. Assim, construíamos os significados, dando cores e imagens às palavras, mesmo que elas fossem instruções e advertências.

Por consequência, algumas palavras nos marcaram como vergões. Nem mesmo adultos nos esquecemos delas. Eram bem diferentes desses jargões que martelam a nossa mente com suas exaustivas repetições. Os jargões não passam de uma celebração à ignorância e uma violência contra a educação, pois transforma pessoas em receptores passivos e repetidores involuntários de palavras ou frases. O que me refiro é o encanto de receber as palavras como pérolas para adornar a experiência de vida. É lembrar-se das palavras e relacioná-las a pessoas e acontecimentos de vida, bem como a experiência marcante da história. Nessas lembranças, às vezes, temos a experiência do flashback, imaginando as vozes e as imagens do passado. Aliás, a memória nos faz viajar para trazer a lembrança dos aprendizados que precisamos usar como ferramentas em momento oportuno.

Agora lembro que, certa vez, a poetisa Adélia Prado refletiu que o nosso corpo é feito de palavras. É impressionante como as imagens, que vimos, interiorizam a leitura do mundo. As palavras têm uma conexão simbólica com a leitura de mundo com suas imagens e cores. Fazemos-nos participantes da história nos construtos da mente. É o modo solene pelo qual adentramos no mundo das ideias onde o pensamento se materializa com o jogo simbólico das imagens que criamos.

A mesma coisa disse Rubem Alves, explicando que as palavras grudam em nosso corpo como uma tinta ou tatuagem. O que ouvimos não poderá ser removido e que novas palavras são inseridas no conhecimento que já temos como a nossa própria vivência. Isso faz parte da experiência com seus casos e percalços.
A CORRUPÇÃO DO SONHO PELA TEORIZAÇÃO DA REALIDADE

Agora cito Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844 -1900) para falar do sofrimento. Para Nietzche, o sofrimento é algo vantajoso na vida. Sem sofrimento não há vitória, não há sucesso. Alguém pode imaginar que o sucesso é algo fácil e natural, mas não existe um caminho reto até o topo. Ele escreveu.

"Não falem de dons ou talentos inatos. Podemos listar muitas figuras importantes que não tinham talento, mas conquistaram seu mérito e transformaram-se em gênios. Elas fizeram isso superando dificuldades."

O sofrimento e as dificuldades enfrentadas por muitos em sua infância e juventude ajudou a valorizar a educação familiar e escolar como a essência da própria virtude. Para alguns, o chão da escola estava no quintal da casa e nos afazeres domésticos. As aprendizagens fluíam com a naturalidade do crescimento físico com a mesma graça e verdade. A cada momento era plantada a semente da esperança doada pela experiência dos mais velhos. Cada palavra plantava o sonho da imitação da virtude dos pais. O orgulho de pertencimento à família dava-se em função da proximidade do respeito e do reconhecimento.

Atualmente a renúncia ao sofrimento tem corrompido à criança. Prega-se uma realidade ausente de fraquezas, tristezas e frustrações. A criança é o centro do universo com suas queixas e direitos, precursor da formação de um adulto servo do paternalismo exacerbado. Como consequência, temos a imaturidade e a rebeldia do adolescente e do jovem. O enfraquecimento do pátrio poder é uma realidade evidente nos nossos dias com pais inseguros e impotentes diante da desobediência de seus filhos. A intervenção do Estado nas famílias decorre dessa insegurança e desespero.

Todos esses problemas deságuam na escola como se fosse um espaço para cobrir a ociosidade das crianças que reclamam por curtição e irresponsabilidade. A tragédia da educação inaugura-se na sala de aula pelo enfraquecimento da capacidade da escola de resolver conflitos com origem familiar. O desrespeito aos profissionais da educação inaugura a época da violência simbólica, verbal e física. Os pequenos ditadores ameaçam, constrangem e agridem, fazendo com que os atos infracionais sejam uma rotina no ambiente escolar. As famílias incentivam o desrespeito ao professor quando os tratam como empregados dos seus filhos. A obsessão pela aprovação faz com a educação seja uma mercadoria muito barata em detrimento do conhecimento real. Agora esperemos o tiro de misericórdia na educação com a promoção automática dos alunos, inclusive daqueles que não moveram sequer um dedo para apreender uma gota de conhecimento.

Espera-se com a educação progressista e libertadora (que nunca se entendeu o que era) venha tornar a educação uma mercadoria por meio de barganha política do poder público com o lobby dos intelectuais. A posição secundária imputada aos educadores faz com o aluno e suas famílias estejam no centro da razão e excluídos de responsabilidades com relação ao fracasso escolar.

CONCLUSÃO

A reflexão nostálgica não se encerra nessas linhas. A imaginação inaugura reticências com as indagações e explicações a serem buscadas. Sou apenas um especulador teórico usando a nossa vã filosofia para entender os mistérios que existem no céu e na terra. Estou limitado para compreender a evolução do pensamento humano e as inúmeras contradições que surgem no duelo de palavras inúteis, onde cada um deles busca convencer-se da verdade. Portanto, a ideologia se alimenta do ego em relação ao próprio conhecimento. Quanto a mim, voltarei a dormir na simplicidade do humilde conhecimento aprendido pelos antigos, dialogando com os saberes que me são apresentados.

REFERÊNCIAS


ALVES, Rubem. Um Céu Numa Flor Silvestre: a Beleza Em Todas as Coisas. Campinas: Verus, 2009.

BOTTON, Alain. Desejo de Status. Tradução de Ryta Vinagre. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O Que é Educação. São Paulo: Editora Brasiliense, 1981.

CHALITA, Gabriel. Educação: A solução está no afeto. Rio de Janeiro: Editora da Gente, 2001.

CURY. Augusto. Os segredos do Pai-Nosso. A solidão de Deus: um estudo psicológico da oração mais conhecida no mundo. Rio de Janeiro: Sextante, 2006.

NIETZSCHE. Coleção Os Pensadores. Vol. 1. São Paulo: Nova Cultural, 1987.

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